Caros amigos e visitantes, trago-vos este relato ainda em homenagem ao mês daqueles que se amam, juntamente com uma bela canção que costumava tocar em Sírhion... tal relato realmente aconteceu e está gravado em minha memória e coração...
Que a bem-aventurança dos sentimentos nobres e sublimes sempre estejam contigo, nobres amigos...
Sob a lua (Antes da Tempestade)
Fui até a sacada do palácio de Sírhion respirando fundo. A noite cobria cada canto como um manto de ônix, e a pálida luz de uma lua minguante não valia de muita coisa. Sentei-me em um banco; a sacada é grande, uma bela estrutura de madeira, com plantas e flores se entrelaçando em suas colunas. Tudo o que os elfos fazem, afinal, está em harmonia com a natureza. Parecia que, com meu nervosismo, eu era a única coisa que não estava combinando com aquele cenário, com a paz escura daquela noite. Se bem que, mesmo ali, as noites pareciam maiores, mais escuras e mais sombrias.
Ouvi passos vagarosos de alguém adentrando o meu refúgio noturno, minutos depois. Meus ouvidos, acostumados a reconhecer qualquer tipo de som, sabiam a quem eles pertenciam; eu conhecia o jeito de andar do rei de Sírhion. Olhei para a porta de entrada e o vi; quando ele me percebeu, havia surpresa em seu rosto. Embora estivesse escuro, meus olhos já haviam se acostumado, naquela altura, à iluminação quase inexistente. Preocupado, ele andou até a minha direção. Eu baixei o olhar. Não queria ver seu rosto. Não queria me lembrar daquilo que havia sonhado, há cerca de meia hora atrás.
(...) Estava frio. Eu estava na câmara mortuária do palácio de Sírhion. Vários túmulos de mármore esculpidos guardavam corpos de reis, príncipes, rainhas, guerreiros, clérigas, generais, enfim, de pessoas caras e importantes ao reino. No entanto, um deles não estava desocupado e reluzente como os outros; havia um corpo sobre ele, ainda conservado, sendo velado ali por algum motivo que me escapava. O rosto sem vida, pálido como a cera de uma vela, as mãos entrelaçadas ao cabo de uma espada ornamentada que repousava sobre seu peito, e uma bela túnica azul e prateada. Eu me aproximei, sentindo o quente das lágrimas escorrendo, beijei a testa, as mãos e os lábios de Coran morto, numa intimidade que nunca havíamos tido, mas, que todos os deuses sabiam, eu – e tinha praticamente certeza, nós - desejávamos. E fui embora vestida para uma batalha (...).
- Lady Astreya, está se sentindo bem? – ele perguntou, tirando-me de meus devaneios.
- Sim – eu respondi prontamente, com a voz falhando um pouco, agradecendo por estar escuro e ele não poder ver meu suor e as lágrimas que se formavam em meus olhos – perdi o sono, apenas isso. Perdoe-me majestade, se eu o incomodei.
- Não – ele sorriu um pouco desconfortável; não gostava que eu o chamasse de majestade o tempo todo, mas eu devia a ele respeito – você não me incomodou. Eu não durmo após a madrugada. A maioria de nós não dorme, na verdade, mas fica em seus aposentos esperando a noite passar. Mas você costuma dormir. Eu sei o que acontece com você para acordar no meio da noite. Teve alguma visão?
Eu me virei, incapaz de responder, descontrolando-me muito alem do que gostaria. Apertei o roupão que usava para cobrir minha camisola ainda mais; um vento frio soprava agora, forte o bastante para afastar meus cabelos do rosto.
- Não foi nada demais, apenas pesadelos envolvendo eventos passados, quando fiquei presa no calabouço do Cavaleiro Negro – foi a melhor desculpa que pude arranjar, agora que ele havia percebido meu nervosismo, se isso já não havia acontecido antes.
Ele tocou meu ombro levemente.
- Também não gosto de me lembrar disso – sua voz era grave.
- Vocês foram para lá rápido – eu atalhei – evitaram que o pior acontecesse. Não gosto de me lembrar de como me senti lá dentro, pois achei que todos vocês tivessem morrido...
Quando falei essa palavra, o nó que havia se feito em minha garganta pareceu se desfazer para o pior. Era o pranto que estava guardando o tempo todo vindo a tona. Na masmorra do Cavaleiro Negro, eu não chorei. Estava tão chocada e revoltada, que não chorei. Quando acordei do pesadelo, não chorei. Agora, as duas coisas se misturavam e o medo do que poderia vir se apoderava de mim. O que havia sido aquele sonho, aquela visão?
Ele me virou delicadamente e me abraçou. Depois, me afastou levemente e levou a mão até o meu rosto, secando minhas lágrimas.
- Eu não sei o que mais você viu que não está querendo me contar – ele disse, com a expressão tranqüila – mas você está com medo. Todos estamos. A noite está mais escura, o ar está pesado. São tempos difíceis. Sei que suas visões são acuradas, mas não se impressione tanto. Você mesma me disse uma vez que todo destino pode ser mudado. Você já previu a queda de seu grupo. E estão todos vocês, a exceção de Evan, vivos. Até mesmo por causa de suas visões, vocês mudaram seus cursos de ação e puderam moldar seus destinos de maneira melhor.
Eu fiz um sim com a cabeça.
- Você tem razão – eu respondi – eu apenas não quero que nada aconteça aqui... e com você.
- Nada vai acontecer – ele disse, sorrindo ao me ouvir dirigindo-se a ele com um pronome de tratamento mais adequado a um amigo de longa data – e eu não tenho medo, Astreya. Não por mim. Mas eu sei que dizer isso não vai deixá-la mais tranqüila, assim como não me deixaria mais tranqüilo ouvir o mesmo de você.
A situação já estava bem clara aos olhos de nós dois. Mas algo que ia além do desejo de sermos discretos e respeitosos um com o outro nos impedia de levar qualquer intenção de deixar tudo ainda mais claro adiante, uma certa apreensão que preenchia nossos corações. Era um medo, afinal, do que poderia acontecer. Ele pareceu se adiantar, no entanto. Me apertou forte em seus braços, e eu, cedendo aos meus sentimentos, coloquei minha cabeça em seu peito. Alguns criados e pessoas da corte já começavam a aparecer nos corredores. A manhã já ia romper, afinal. Levantei a cabeça um pouco apreensiva, no que ele beijou minha testa. Surpresa, toquei seu rosto e fechei meus olhos aproveitando aquele momento.
- Pela tarde – ele disse, soltando-me mas sorrindo – eu quero falar com você, Lady Astreya, minha barda real.
Eu sorri.
- É claro – fiz uma pequena mesura.
- Vossa Majestade – a voz de um criado ressoou atrás de nós – Perdoe-me. Tens uma visita, e ele diz que é urgente.
Nos viramos, um pouco embaraçados - no entanto, tal sentimento foi rapidamente encoberto por outro, o de surpresa e, logo depois, de apreensão. Pois atrás do criado, havia ninguém menos que o Senhor dos Ventos.